
PROSAS, CAUSOS E FICÇÃO
VOCÊ, UM ADORÁVEL CÃO.
“Morena eu vou, eu vou.
Vou descendo o Rio Almada minha canoa e minha tarrafa me acompanham.”
(Dido Oliveira)
Carlos Bastos Júnior (China)
Um dia, voltando à minha infância lembrei-me de um canoeiro, pescador, tarrafe iro e vendedor de mudas que morava do outro lado do rio, perto do axé do mais famoso Pai de Santo de Coaraci, Sr. Joaquinzinho. Este, embora muitas vezes discriminado, desempenhou um papel importante na cultura e na religiosidade da cidade. Os do meu tempo, assim como eu, com certeza lembram-se do seu Ambrósio e do seu cãozinho chamado “Você”.
Homem simples, alegre, que fazia da labuta e o amor por “Você” a sua razão de viver. De mãos da sua tarrafa descia o rio Almada numa canoa, cantando e pescando e quem sempre estava à proa, qual um marujo experiente, era o seu companheiro fiel e inseparável cãozinho.
Para o pescador a descida do rio não era apenas uma lida, mas também momentos de lazer e de alegria. Sempre que ele pegava a sua canoa e Você entrava, seu Ambrósio começava a remar e a se afastar das margens, entoando canções como se quisesse mostrar para todos que a felicidade não é sofisticada, mas simples.
Aquele era o mundo de ambos: Ambrósio, Você, o rio Almada, a canoa e a tarrafa. Tal qual o velho Santiago, personagem de Hemingway na ficção “O Velho e o Mar”
Talvez se o diretor de cinema David Frankel tivesse conhecido a história de seu Ambrósio e Você, certamente não faria o filme Marley e eu e sim, um filme sobre os dois.
Você era um cãozinho adorável, branco como a neve e pelos sedosos. Adorado por todos que o conheceram.
Aos sábados, na feira, seu Ambrosio ia vender mudo de laranja, coco, lima, limão e tantas outras que não me lembro, sempre acompanhado do seu inseparável amiguinho. Estavam sempre juntos, como gêmeos xipófagos.
Mesmo na labuta da feira, entre a comercialização de uma muda e outra, os dois sempre procuravam se divertir e divertir aos outros. Lembro que seu Ambrosio colocava o dinheiro que havia ganhado com a venda das mudas sob o chapéu e dizia “Você, tome conta e não deixe ninguém pegar.” Recomendava e saia para outro local, apenas para proporcionar diversão aos que na feira estavam.
Naquele momento o amável cãozinho se transformava num temido guardião, num Cérbero, e atacava quem ousasse pegar no dinheiro sob o chapéu surrado do seu dono.
E assim era a vida dos dois. Vida cheia de amor mútuo, de fidelidade e companheirismo ímpares.
Mas a às vezes a vida nos prega determinadas peças que são verdadeiras tragédias. E com os dois não foi diferente.
O SINUCA DE ABDALA
Assim como o velho e maravilhoso Jazz Bolacha é um marco importante para gerações, inclusive a minha, não menos era o sinuca de Abdala, localizado na Avenida Juracy Magalhães.
Faziam parte também desse cenário o cinema; o bar Marlex, do Sr. Edivaldo; a lanchonete do saudoso Moisés, aquele que na minha infância se vestia de urso nas micaretas da cidade para apenas alegrar a criançada, e que vendia um caldo de cana delicioso e uma panqueca sem concorrência; o carrinho de pipoca do nosso ilustre e eterno Gonzaga; a baiana dona Margarida, com seu tabuleiro repleto dos saborosos quitutes, acarajés, cocadas e abarás; a venda do Sr. João Gualberto, que vendia o refresco de limão mais gelado e saboroso que já bebi na minha vida, além da sorveteria do estimável Ozinho com seu sorvete de coco, o melhor da região.
Mas o sinuca de Abdala era incomparável, local de encontros de amigos e apreciadores da arte do jogo de mesa bretão.
Quem, antes de ir ao Cine Teatro Ana, não passava pelo bar de Abdala para ver os grandes mestres do taco fazendo suas jogadas magníficas?
Por lá passaram Rui Chapéu, Carne Frita, Rato Branco. Até o lateral direito do Botafogo e da seleção brasileira, Perivaldo, foi testar as habilidades do astro, sem falar nos cobras coaracienses e tantas outras feras do snooker.
Mas o árabe coaraciense era um ás da mesa, jogava com maestria e paixão, fazia do taco a extensão das mãos e colocava a bola na caçapa como se fosse um jogador da NBA marcando pontos de enterrada.
Fabuloso, indescritível! Todos os “cobras” eram seus fregueses, esportivamente falando.
O mestre Abdala era inigualável, quando pensava a jogada fazia com o raciocínio só facultado aos gênios. Na hora da tacada enxergava com olhos de águia que fazia os adversários se sentirem tão diminutos quanto um grão de areia no deserto.
Concentrava-se no objetivo de vencer e a vitória sorria-lhe sempre, tornando-se a companheira inseparável.
Portanto, não só os súditos da rainha podem se orgulhar das suas lendas do snooker como Joe Davis, Stepen Hendry, Steven Davis e Ray Reardon. Nós também tivemos o nosso campeão, a nossa lenda do sinuca, que ocupará sempre um lugar privilegiado nas nossas lembranças.
O saudoso e lendário Abdala Fraife.
Carlos Bastos Junior (China)
UMA CASA QUE NÃO ACONTECEU
Foi entre um telefonema e outro que o camarada Pedro Rui e eu começamos a lembrar de algumas lutas que travamos juntos, entre elas uma batalha incansável e perdida para fundar a Casa de Estudantes de Coaraci em Salvador. Grandes lembranças amigo Rui, nossas reuniões aconteciam sempre às quartas a noite na ―Mansão dos Dois Cachorrinhos‖, aquela mesma localizada na Ladeira da Gabriel Soares – Aflitos - palco de tantos acontecimentos agradáveis e de alegres recordações. Nosso exército era formado por Elson Luciano (Jacaré), Helder Reis, eu (China), Pedro Rui, Dinho (filho do Sr. Armando da Barragem), Luiz (Asa Branca), Luiz Cunha, Zé Quinto, Paixão Barbosa e Mitermayer Galvão. Contávamos em Coaraci com a guerreira Elizabete Batista (Bete 7), sempre incansável quando se trata de lutar pela melhoria da cidade, e Socorrinho, irmã do companheiro Helder Reis. O ano era 1979, Antonio Lima era o prefeito e a nossa turma se mobilizava, quase que isoladamente, para tentar sensibilizá-lo sobre a importância da instalação de uma Casa de Estudantes de Coaraci em Salvador, mas nada conseguia convencê-lo. Numa das nossas viagens à Coaraci fomos ao gabinete de Antonio ―Bam-bam-bam‖ e ele nos disse ―que Coaraci não precisa de uma casa de estudantes em Salvador porque na região já tem uma universidade‖. Nítida referencia à FESPI, como era chamada anteriormente a UESC. Contra argumentamos que nem todos os cursos eram oferecidos pela Federação das Escolas Superiores a qual ele se referia e o estudante que quisesse fazer Faculdade de Medicina, Odontologia, Veterinária, Sociologia, as diversas Engenharias ou outros cursos não poderiam porque na FESPI não havia ofertas para esses cursos. Além do mais, em Salvador, a preparação para o vestibular seria de melhor qualidade, pois existiam cursinhos pré-vestibulares e muitos davam bolsas para os alunos oriundos das cidades do interior, principalmente os que habitavam em residências estudantis Para reforçar os nossos argumentos utilizávamos como exemplo os municípios de Itajuípe e Itabuna, que inclusive eram mais próximas da FESPI e mesmo assim mantinham as suas casas de estudantes na capital, como também as cidades de Vitória da Conquista, Guanambi, Nova Canaã, Caetité, Itaberaba e tantas outras cidades baianas. Só o prefeito de Coaraci resistia à ideia. Mas isso não foi apenas privilégio de Antonio Lima, os que o sucederam também se comportaram da mesma forma. Mesmo assim continuamos com a nossa luta em prol da casa dos estudantes de Coaraci por muito tempo. Fazíamos planos – a casa não seria apenas um local de moradia, mas um Centro Cultural com projetos de cineclube, arte popular, oficinas de arte que de alguma forma desse retorno à cidade. Como lembrou Rui, o estudante residente teria que prestar algum tipo de serviço à comunidade quando estivesse cursando a universidade e retornasse no período de férias. Esse item faria parte do Estatuto da Residência. As residências estudantis eram verdadeiros espaços de efervescência cultural, participavam de festivais de toda espécie. A Residência dos Estudantes de Conquista era uma das mais frequentadas, a de Guanambi também. Chegamos a promover várias mostras de som em Coaraci com a participação de artistas como Marilda Santana, Letieres Leite e outros não menos consagrados. Imaginávamos, como todo coaraciense de quatro costados, como diz Paixão Barbosa, que fundada a Casa de Estudantes poderíamos fortalecer a vida cultural da nossa cidade e através do intercâmbio com outras casas estaríamos inserindo também Coaraci nesse caldo de cultura saído das Residências Estudantis. Helder Reis não media esforços para manter contato com o pessoal de Itajuípe, Itabuna, Guanambi e outras cidades. Como bem lembra Pedro Rui, a pick-up do Sr Ulisses viajava pra cima e pra baixo com Helder ao volante para reuniões em Itajuípe e Itabuna, era um abnegado. Nossa empreitada durou anos e sem sucesso. Pedro Rui, numa das nossas conversas me questionou o que teria acontecido se a Casa de Estudantes tivesse sido implantada? Acho, Rui, que a Casa se manteria como muitas até hoje ou teria findado como tantas outras, mas com certeza o ganho para a cidade teria sido enorme. Primeiro porque daria oportunidades a quem queria sair para estudar em Salvador e não tinha condições, segundo porque através da residência estudantil a cidade estaria participando do debate sociocultural que na época existia fortemente, e por fim, seria muito bom termos a sensação do dever cumprido e de ter dado mais uma contribuição para nossa amada Terra do Sol.
Carlos Bastos Junior (China)
AS PÉROLAS E OS PERIGOS
O inesquecível Professor Carburão estava em meio a um dos seus discursos naquela língua que ele só falava quando estava embriagado e que afirmava ser inglês misturado com sei lá o que, e no meio da sua falação, sobre a carroceria de uma camionete, ouviu-se um estouro de fogos de artifícios. Imaginando ser um tiro de arma de fogo, ele pausou o discurso e gritou: - Que Deus vos dê um bom lugar! E continuou o seu discurso que sempre terminava em um ótimo português. Alguns dias após, ocorreu a maior explosão já registrada no centro da cidade. Quase todo mundo ouviu e temeu o acontecido que, após alguns minutos foi checado pela multidão que saiu de encontro ao ―epicentro‖ da detonação para ver o que restara do centro da nossa cidade. Ambrósio jardineiro olhou para Você, seu famoso cachorro com quem sempre conversava, e argumentou: - Eta zorra! ... Com o som de um traque o Professor Carburão pediu um bom lugar para um possível defunto, com esse estouro ele deve tá por aí gritando para Deus construir uma grande vala comum. Chegando ao local da explosão, a multidão viu uma flor, sim, uma grande flor com pétalas muito bem feitas do aço contorcido pela explosão. Foi exatamente no que se transformou o bujão de gás do carrinho de pipocas de Gonzaga. Bem ali, no lugar de sempre: em frente ao Cine Teatro Ana. Nem mortos nem feridos por que Deus também é coaraciense. Quem não se lembra desses acontecimentos e das pérolas que eram os personagens citados? Pois bem, eles eram folclóricos e me aperta o peito de saudades deles, mas também, outra coisa aperta o meu peito e, estou certo de que outras pessoas sofrem de igual sentimento quando avistamos o incômodo visual que, acredito já não incomodar a população local que o incorporou ao seu cotidiano e acaba não percebendo o possível potencial de risco, e desta feita um risco real. Falo da, entre outras, a outrora belíssima Serra de Palha. Em ato falho já me peguei denominando-a de Serra Pelada. Não pela riqueza da outra, mas pelo desmatamento desenfreado da nossa bela serra que hoje a vejo ―seminua. Além de divulgada realidade de se buscar riqueza com a venda do Crédito de Carbono para os municípios que preservam as suas reservas florestais e, certo também de que as nossas autoridades municipais, lógico, conhecem as histórias e as fotografias do Sr. Aguiar, sobre a enchente da década de sessenta, na qual as águas atingiram e adentraram a sua e as demais casas ao redor da antiga praça da feira, pergunto: já que naturalmente, a qualquer período estamos à mercê de eventos semelhantes e, se naquela época, com toda mata das serras que margeiam o Almada a montante e a jusante da cidade, quase que totalmente virgens atuando como colossal esponja retentora e fortaleza para quebrar a velocidade das águas torrenciais, e que mantinham o leito do rio sempre volumoso e belo, ainda assim naquele evento registrou-se tamanha enchente no centro da cidade, e agora com as ―serras peladas‖, com o mínimo das suas capacidades de retenção, propiciando velocidade das águas e arraste restos de matérias oriundos dos desmatamentos que provocam bloqueio das artérias do rio com rápida elevação do seu volume. Como é provado que para toda ação existe uma reação, pergunto: qual seria o plano de ação emergencial prevista pelas nossas autoridades municipais para eventual necessidade de proteção da comunidade e da estrutura da cidade? As empresas que conquistam o certificado ambiental costumam construir um plano de ação denominado HAZOP, no qual envolve todos os lideres por área de atuação e identificam todos eventuais pontos de riscos com as suas respectivas formas de prevenção. Construído o HAZOP, nada melhor do que envolver a comunidade que civicamente se organizará e fará questão de ajudar. Pensemos nisso. Um forte abraço aos meus conterrâneos.
Ulisses Filho.
MORDE BEIÇO
Na estrada do povoado de Macacos, antes de chegar na fazenda de Joaquim Moreira, existia uma avenida de casas de palha conhecida como “Rua Morde Beiço”, esse nome surgiu depois de uma briga, em que um dos meliantes mordeu o beiço do outro até tirar o pedaço!
LADO SUL E LADO NORTE
Dorme sujo ou come na garrafa
Texto adaptado por PauloSNSantana
Por volta de 1948, 1949 e 1950, brigas entre jovens coaracienses do lado sul e do lado norte da cidade chegaram a ser programadas sobre a ponte principal, considerada uma região neutra, mais tais brigas nunca chegarão acontecer. No lado Sul de Coaraci, no auto da Igreja Católica era o local preferido para empinar arraias, enquanto no lado norte, o local preferido era no alto do Pedro Procópio, onde hoje está localizado Centro Social Urbano de Coaraci, e depois os jovens do bairro do cemitério passaram a empinar arraias do Campo de Futebol.
Por volta de 1958 a 1960 quase não se empinava mais arraias, pois quase todos os jovens haviam ultrapassado a adolescência ou tinham deixado Coaraci, à procura de melhores condições em outras Cidades.
Quando acontecia algum jogo de futebol entre essas duas regiões, pessoas mais velhas eram convidadas para garantir a paz entre as equipes. Mais mesmo assim, esses grupos voltavam a se encontrar no sábado de aleluia, quando a molecada munida de tacas, chicotes, feitos de malva, um pequeno arbusto encontrado em quantidade nos arredores da cidade, se preparavam para atingir as canelas dos outros garotos e as chicotadas eram acompanhadas do grito de guerra: "ALELUIA IRMÃO!". As tacadas recebidas eram aceitas na boa se acontecessem entre jovens conhecidos. Se viessem dos meninos residentes no lado esquerdo do rio, era briga na certa.
Naquela época havia discriminação motivada pela situação econômica dos pais, geralmente os jovens do lado norte eram filhos de pais pobres e não eram vistos em cinemas, escolas do centro da cidade e por não serem conhecidos e muito menos se saber quem seriam os seus pais, eram vitimas de preconceito econômico e muitas vezes raciais.
Os jovens da classe média alta costumavam apelidar os do lado norte de filhos de pessoas pobres e humildes, de dorme sujo ou come na garrafa.
Com o tempo, principalmente quando começaram as atividades sócias educativas e esportivas do Centro Social de Coaraci, essa situação mudou radicalmente, e hoje todos são bem relacionados independentemente de cor, do poder aquisitivo, ou situação social.
Um avanço muito importante para a região.
Fonte Coaraci Último Sopro